segunda-feira, abril 30, 2007

Coração Valente

(Quadro de Paul Klee)

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, d'esta altura fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E noite, onde foi luz de primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera
Semeador de sombras e quebrantos!--

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: D'esta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.

Antero de Quental

terça-feira, abril 24, 2007

O Adeus... o ficarmos sós

Sobre o lado esquerdo

De vez em quando a insónia vibra com a
nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas
uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas
da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme
pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo
e assim, deslocando todo o peso do sangue
sobre a metade mais gasta do meu corpo,
esmagar o coração».

Carlos de Oliveira

sábado, abril 21, 2007

1970

sábado, abril 14, 2007

Estado Puro

A ninguém senão ao mar...

A ninguém senão ao mar nas suas longas marés
entregues essa árvore verde e azul que mora
no silêncio do coração e sobreviveu às tempestades.

É maior o silêncio do que o deserto, e mais vazio
do que o nome que subiu aos lábios. A ninguém
senão ao mar, por entre ilhas e continentes submersos
e antigos, devolvas as cartas de marear ou esse limite

dos horizontes antes da noite, porque nada mais
do que um silêncio há-de ficar, para chorar, nada mais
do que um acordar, e adormecer, nada mais do que essa
árvore que habitava o peito, como só o mar pode habitar.

Francisco José Viegas

quarta-feira, abril 11, 2007

Ária

(Foto: Deborah Kate)


O amor desconhece o caos das
águas as vagas

os surtos que se cruzam
irrompendo

o cerco das cidades como lagos
onde termina o curso das correntes

Gastão Cruz

sábado, abril 07, 2007

Se Por Acaso...

Sonhos por haver

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incómoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado--esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que eu nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido--
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso--e foi afinal o melhor de mim--é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro--
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível pra mim.

Álvaro de Campos

quarta-feira, abril 04, 2007

Enjoy the Silence