sexta-feira, novembro 24, 2006

O Jogo

(Quadro de Salvador Dali)

Por conseguinte eu ia no jogo. Sabia que elas gostavam que se não fosse muito depressa ao fim.
Antes de tudo, era preciso conversa, ternura, como elas dizem.
Quanto a discursos, não estava eu mal, pois era advogado, nem quanto a olhares, pois tinha sido, na tropa, aprendiz de comediante. Mudava muitas vezes de papel, mas tratava-se sempre da mesma peça. Por exemplo, o número da atracção incompreensível, do «não sei quê», do «não há razões, eu não desejava ser atraído, estava, no entanto, cansado do amor, etc., ...» era sempre eficaz, posto que seja um dos mais velhos do reportório. Havia também o da felicidade misteriosa que nenhuma outra mulher jamais nos deu, que é talvez sem futuro, de certeza mesmo (pois nunca as precauções são demais), mas que, precisamente, é insubstituível. Eu tinha aperfeiçoado, sobretudo, uma pequena tirada, sempre bem recebida, e que o senhor aplaudirá, tenho a certeza. O essencial desta tirada consistia na afirmação, dolorosa e resignada, de que eu não era nada, não valia a pena prenderem-se a mim, a minha vida estava alhures, passava ao lado da felicidade de todos os dias, felicidade que talvez eu preferisse a tudo o resto, mas, enfim, era tarde demais. Sobre as razões deste atraso decisivo, eu guardava segredo, pois sabia que era melhor dormir com o mistério. Em certo sentido, aliás, acreditava no que dizia, vivia o meu papel. Não admira, pois que também as minhas parceiras se entusiasmassem também com o delas. As mais sensíveis das minhas amiguinhas esforçavam-se por me compreender, e este esforço, levava-as a melancólicos abandonos. As outras, satisfeitas por verem que eu respeitava as regras do jogo e tinha a delicadeza de falar antes de agir, passam sem esperar às realidades. Tinha então ganho e duplamente, pois que, além do desejo que sentia por elas, satisfazia o amor que eu me dedicava, verificando de cada vez os meus belos poderes.

Albert Camus (in «A Queda»)

3 comentários:

Anónimo disse...

Angustia, culpa, indecisão e inevitavelmente solidão, é o que este excerto de um livro que não li, mas que se adivinha fabuloso, me faz lembrar.

Moisés Gaudêncio disse...

Ainda não cheguei a essa parte, vamos lá ver se não há reviravolta num caminho demasiado óbvio...
Fascinou-me a brutalidade e clareza da confissão...

Anónimo disse...

Brutal sim...ele sabe muito bem o que fazer para provocar a reacção que precisa. Olha de fora e nunca se envolve. Controle absoluto sobre a emoção para não perde a capacidade de auto-análise tão lúcida.

Aguardo a reviravolta....