Tomás apareceu pelas onze horas com o carro. Levámos
a nossa mãe à igreja (ela não fora à Missa do Galo), aguardámos
que saisse.
--Já não vais então à missa--disse-me Tomás.
--Há quanto tempo... Mas ainda ouço os coros.
--Como ainda?
(...)
--Como estranhas que eu os ouça?-- disse eu ainda.--
Sabes tu... Sabes tu o que é a vida?
--A vida... Bom. Tu lês muito, tu sabes coisas. É claro,
também leio, também penso. Leio pelas noites de Inverno, a
Isaura rala-se. Mas eu trabalho a terra. É dificil explicar-te: a
gente colabora com a terra. A gente come os frutos, a gente
mata as reses, mas não as destrói. Há um pacto de aliança.
O sol não nos aquece: aquece a terra. É difícil explicar-te.
(...)
Após um longo silêncio, os cânticos irradiaram de novo
da igreja, abrindo no adro como uma grande flor de neve.
--Mas tu não ouves esta música?--perguntei.
--Ouço. Mas não ainda como tu. Hei-de ouvi-la sempre,
suponho.
--Mas não és crente, tu.
--Se o fosse, não a ouvia suponho. Os que estão dentro
não a ouvem: cantam-na. A terra não se conhece a si própria.
--Terás tu... Terás tu achado o que procuro?
...essa superação de todo as angústias, de todas as dúvidas?
Terás tu visto o absurdo e o milagre, e ficado tranquilo?
--Não sei o que queres dizer. Mas tenho a certeza de
que não achei o que procuras. Porque, se tu procuras, só tu
podes achar.
Vergílio Ferreira (in "Aparição")
quinta-feira, dezembro 14, 2006
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4 comentários:
é tão simples e tão evidente, não é? os caminhos são pessoais e os processos são internos. principalmente estes que têm a ver com o nosso posicionamento cósmico, espiritual, ..., whatever...
Yeeep! é o que dá andar a rever os existencialistas...
e isso não é perigoso, nesta idade?? :)
Perigoso e muito subversivo! ;)
Acho que estas questões nos acompanham pela vida fora... mas é certo que há alturas em que se tornam mais pertinentes. Por razões várias...
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